quinta-feira, 7 de março de 2013

A estante das memórias



Assumo-me publicamente como uma devoradora de livros. Ainda que seja impossível contabilizar pormenorizadamente a quantidade de livros em que já depositei o meu olhar comprometido, tenho em mim a memória de quase todos eles. É uma memória viciante, ininterrupta e sem lacunas. É um conjunto de recordações emotivas que ornamentam os meus dias na companhia destes amigos que me falam em silêncio, pausada e docemente, à alma. 

Não consigo enumerar os livros que já li, nem os que comecei a ler e deixei a meio do caminho e muito menos os que pensei ler e desisti mesmo antes que o namoro começasse. A relação que se estabelece com os livros é uma relação séria e duradoura que requer de nós uma honestidade no compromisso que assumimos, independentemente do modo como somos apresentados e das intenções de cada parte. É um tempo que se dedica mutuamente, com o devido respeito pelo livro que se deixa ler e por quem cede o tempo e o espaço vazio que há em si para ganhar mais vida e mais de si próprio. Muitas das vezes nem há um conhecimento prévio, trata-se de uma paixão avassaladora que nos leva a sermos seduzidos pela capa, pelo título ou por uma qualquer inspiração divina e pouco consciente. Outras tantas vezes, trata-se de um encontro premeditado e engendrado: um amigo recomenda e convence à leitura como se se tratasse de um casamento por conveniência e que resulta, com frequência, felizmente conveniente. Ultrapassado o constrangimento da intimidade, quando existe, não há retorno: damos por nós mergulhados nas letras, página após página, e estabelece-se aquela que será uma ligação eterna e afirmada. É uma ligação que fica escrita de forma invisível, mas que está escrita, tal como o próprio livro, para nos recordar que existe e que é real. É uma ligação indelével e que vai amadurecendo, associando-se a tantas outras ligações que estabelecemos ao longo da vida, ganhando um corpo indissociável do nosso próprio corpo. Perdemo-nos do nosso mundo para um outro mundo que se abre diante de nós, mágico e infinito.

Os livros são amigos de toda a vida e para além da vida. Intemporais, magistrais e altivos. São um pouco de nós que vai criando o muito em nós de forma insaciável, para sempre ser mais e mais. São uma aventura temerária e amorosa que rouba algumas das nossas ideias e certezas, que nos deixa despertos, suspensos no interlúdio da respiração - aquele preciso momento em que o corpo se torna inesperadamente leve - para seguidamente nos preencher de conceitos, visões, imagens e suposições.

Não consigo enumerar os livros que já li, mas consigo lembrar-me de todos eles ao lembrar-me de mim mesma, da minha história, da minha infância já tão adulta, da minha adolescência um pouco mais pueril e de mim mesma tal como agora sou, no caminho crescente de ser a mulher madura e sedenta da criança que fui: crescida e infantil ao mesmo tempo. Os livros que me têm acompanhado têm marcado os momentos mais decisivos da minha vida, tendo chegado até mim por caminhos seguros e destinados a ser. Têm estado presentes na minha vida no momento em que preciso deles, tal como um amigo fiel e constante, respondendo a dúvidas profundas e muito minhas e fazendo-me sonhar quando a alma está cansada do que conhece e precisa de voar.

E relembrando todos os livros que compuseram a minha história, admiro orgulhosamente a minha estante, aquela que é a representação da minha vida, o santuário dos meus livros e das minhas memórias, perfeitamente incompleta e aguardando constantemente que um novo livro se junte para ir, a pouco e pouco, ao compasso da vida, completando a minha história. A minha estante é um fim inacabado de representação própria e é o espelho que reflete a imagem de uma personalidade reconstruída tantas vezes. É o conjunto de recordações das infinitas viagens que fiz dentro de mim, umas sozinha, outras acompanhada dos milhares de personagens que ora foram guias, ora permitiram que eu tomasse o seu lugar para ser eu própria parte de outra história. A minha estante é uma das partes de mim que vai ficar depois de mim, eternizando as múltiplas vidas que me permiti viver, sonhando, recriando e lendo. 


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