quarta-feira, 27 de março de 2013

Pontuação



Sempre me considerei uma pessoa de pessoas. A comunicação, o contacto e as relações humanas têm sido para mim mais do que uma forma de relembrar a minha experiência vívida. As relações humanas têm sido para mim uma forma de me recordar da minha própria condição, mas, acima de tudo, uma forma de aprender, reconhecer padrões e aprofundar a consciência de algo que sempre pensei ser um conhecimento inato. As relações humanas são tudo menos um conhecimento inato. São um desafio inconsciente e involuntário, um salto no escuro que aceitamos dar, pensando que sabemos exatamente onde vamos cair, esquecendo, inocentemente, que é um caminho sem retorno. Cada relação que estabelecemos é uma pontuação que vamos acrescentando ao nosso texto original. Mudam o sentido as nossas frases, prolongam as páginas e vão reescrevendo a conclusão para sempre inacabada.

Sempre gostei de observar as pessoas. Em grupos, sozinhas, os seus gestos, as suas manias, os risos, as expressões, a forma de andar e a forma como esperam paciente ou impacientemente pelo decorrer das suas vidas. Durante muito tempo observei, comparei-me a elas, tentei, na minha ingenuidade, interpretar os seus sinais à luz dos meus. Uma tremenda ilusão e ingratidão. Só mais tarde viria a reconhecer a magia dos termos incomparáveis de cada pessoa, únicos a intransmissíveis. A vida foi-me dando as oportunidades necessárias a transformar essa ingratidão numa experiência de revelação, ajudando-me a compreender que é perante a indefinição dos outros, os seus segredos e os seus silêncios, que nos definimos a nós, não como um oposto ou diferença, mas como um complemento.

Hoje em dia continuo a gostar de observar os outros e faço-o de forma inconsciente. Mas mais do que observar, gosto do contacto direto, da partilha de ideias, de experiências e da conquista da confiança e da intimidade. Gosto sobretudo do momento em que se sente que já se deu o salto no escuro e que, a partir dali, já nada vai ser igual. É talvez o momento em que se coloca uma vírgula. Quem sabe um ponto final para poder começar uma nova frase.

Tenho aprendido com a vida, e talvez por isso tenha escolhido a minha profissão, que o mais importante da vida é aquilo que damos aos outros e o que aceitamos receber. Honestamente, não sei qual das duas tarefas é a mais difícil ou mais desafiante. Para começar, há um ponto que para mim é irrefutável: recebemos o que damos. A um nível mais extremo e mais simplificado, somos aquilo que os outros são, não para nós, mas em relação a nós e, no fundo, aquilo que são para si mesmos. Dito de outro de modo, não há possibilidade alguma de eu ser para alguém aquilo que não sou para mim. O meu modo de ser para com aqueles que encontro no meu caminho não é mais do que uma via de autodefinição, um assumir de consciência e realidade pessoal perante uma realidade conjunta e relacional. E sob este ponto de vista, tão desafiante é receber como dar, pois jamais estarei recetiva a algo que não esteja predisposta a dar, reunindo para tal todas as partes de mim, ínfimas, inclusas e reunidas num puzzle de infinitas peças.

As relações são a magia de todos os dias. São a parte que esquecemos de nós próprios e que aceitamos reconhecer como uma dádiva e algo quem tem de acontecer. A família, as amizades, os amores - platónicos ou físicos - são a nossa versão pública e o espelho da nossa certeza mais profunda. Ilusão é pensar que as relações que vamos tendo e os laços que vamos criando são ao acaso e que não nos definem. São um ato de pura autodefinição com consequente aceitação daquilo que somos, que queremos ser ou desejamos ser – um desafio consciente à nossa recriação. Não há casualidade nos encontros da vida, há sim causalidade. Eu sou isto, quero ser aquilo e sinto-me assim. Encontro-te a ti, perfeito e desenhado ao pormenor das minhas necessidades, aquelas que aceitas como que impostas pelo destino, escolhidas para saciar aquilo de que precisas.

Honestamente, e enquanto pessoa de pessoas, abraço com um sorriso no coração todos os encontros que a vida me dá. Não nego as minhas escolhas e orgulho-me das relações que escolhi criar, das que permiti que voassem mais alto que as minhas expetativas e, inclusivamente, das que terminei, deixando em mim o seu melhor, decididas a findar no momento certo. As razões são as minhas razões e as mesmas que foram a força motivadora da sua criação.

Aceito a minha vida como um livro por escrever, sedento de todas as vidas e de todos os livros em branco que queiram que eu os pontue e, em troca, ajudar-me a pontuar o meu. Aceito e abraço todas as vírgulas e pontos finais que se queiram juntar à minha história para a deixar mais rica, pontuada e eternamente interminável. 


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