quinta-feira, 14 de março de 2013

O sentido perfeito



Há situações em que a nossa intuição, independentemente do crédito que lhe damos, exerce um papel fundamental nas nossas escolhas e opções. Na semana passada, na minha busca semanal de temas instrumentais que servem de banda sonora ao meu trabalho – a música tem o dom de agudizar a intuição e eu agradeço – deparei-me com o tema original e principal de um filme que me era totalmente desconhecido. O título, “PerfectSense”, foi suficientemente sugestivo para que, instantaneamente, me sentisse compelida a pesquisar mais sobre o filme ao ponto de querer vê-lo naquele mesmo dia. Provavelmente terá sido algo mais que o título. Provavelmente terá sido a música que, magistralmente orquestrada pelo extraordinário Max Richter, afinou a minha intuição ao ponto de não deixar passar impune este filme. Poderá ainda ter sido meramente obra do acaso… Mas não. Os acasos não existem e os impulsos são o GPS interno que nos guia na direção correta daquilo que deve ser uma experiência na nossa vida. Qualquer que tivesse sido a razão, rapidamente entendi o porquê da necessidade premente de ver aquele filme.


 Não vou deixar aqui nenhuma espécie de sinopse, até porque espero que se sintam tentados a ver o filme no final do post, e, sinceramente, acho que vale a pena ver. Na verdade, não pretendo falar do filme, mas sim das emoções e ideias que surgiram em mim. Honestamente, acho extraordinário que um filme, uma música, um livro ou um qualquer retalho do dia-a-dia nos possa envolver em pensamentos tão reflexivos, sobre questões que naturalmente não seriam objetos de reflexão - neste caso concreto, a reflexão sobre a condição humana no seu estado mais primário, na substância da sua essência, tal como se exibe perante a inexistência dos artefactos que a sustêm e a elevam a um nível de superioridade perante toda a restante matéria envolvente. 


Que será da condição humana, dos valores, das crenças, das ideias, das conceções, das tradições e constatações físicas e metafísicas, práticas e filosóficas quando a sua sustentação for invadida pela incerteza do futuro e de si própria?


O filme de que vos falo coloca a hipótese, irrealista ou não, de uma epidemia que vai roubando os sentidos, um a um, até ao estado em que o ser humano permanece entregue à sua natureza subliminar. Primeiro perde-se o olfato. Seguidamente o paladar. A audição. A visão é o último sentido que leva consigo o discernimento, a certeza do que existe ou não, a noção da realidade e do que é ilusório.


As hipóteses mais inimagináveis são aquelas que mais prontamente recusamos, mas que nos deixam sem qualquer capacidade de resposta. Perante semelhante cenário, que será esperado do ser humano enquanto espécie instruída, evoluída e cognoscente? Que será esperado de uma espécie - a sublime espécie responsável pelas mais extraordinárias experiências de expansão e crescimento - que se tem afirmado tão veementemente como a espécie racional, superior e inteligente? Que será esperado desta espécie tão distinta quando tudo o que outrora controlou se lhe escapa pelas mãos, por todos os caminhos e possibilidades e, até, pelos seus próprios sentidos? Em última instância, o que acontece à vida quando tudo o resto deixa de fazer sentido, quando tudo o que nos resta é acreditar que aquilo que outrora cheirámos, degustámos, ouvimos e vimos, permanece intacto, disponível sob outra forma de perceção, no fundo, acessível através de outros sentidos? 


É um longo e doloroso caminho a percorrer o de imaginar a nossa existência de uma forma distinta da forma como a conhecemos. Adstrita aos nossos sentidos, há uma forma de controlo sobre aquilo que nos envolve e que nos torna tão vulneráveis, ao mesmo tempo que nos dá, ilusoriamente, a sensação de domínio. Curto e fácil é o caminho de nos perdermos nas ideias, racionalizações e fundamentos daquilo que presumimos ser nosso por direito, quando o que é verdadeiramente nosso e que está presente na sua constância, não é o que nos faz controlar a nossa vida na relação com os outros, mas o que nos permite relacionarmo-nos aberta e genuinamente com os outros, connosco e com a vida.


No fim de tudo o que é a nossa experiência da vida, fica a experiência em si. A memória dentro de nós daquilo que foi a nossa impressão do mundo e da própria vida. No fim de tudo, quando não há mais nada que nos permita atestar a nossa condição humana, resta-nos voltar à forma que nos criou. Podemos manter vivas as recordações do que já fomos, do que vivemos e do que percecionámos, mas, no fim de tudo, resta-nos o que é mais natural em nós. Para além da condição humana, fiel a si própria no permanente processo evolutivo, constante é a fonte de vida que nasce, vive e não morre nunca em nós - o amor. Porque, no fundo, no começo e no fim de tudo, o que faz de nós seres capazes de ter uma perceção perfeita do que é a vida não é a forma como cheiramos, como saboreamos, ouvimos ou vemos, mas sim a forma como sentimos, mesmo sem cheirar, sem saborear, sem ouvir ou sem ver. No começo e no fim de tudo, o que sentimos é a realidade mais verdadeira e genuína que podemos alguma vez experienciar. No começo e no fim de tudo, sobretudo no fim de tudo, a vida é uma experiência de amor.


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