Ao reler um texto que publiquei
há cerca de um mês, dei por mim submersa em questões acerca de um tema
suficientemente controverso, sensível e praticamente intocável. Defendia eu,
nesse dito texto, que a alma escolhe o colo em que decide nascer, tocada por
olhares e gestos de carinho que se tornam na sua primeira impressão deste
mundo. Continuando a defender a mesma ideia, vou mais além ao identificar esse
ninho como o nosso primeiro e verdadeiro desafio. Quaisquer que sejam as
condições que embalam a alma ao nascimento, independentemente do muito ou pouco
funcional que possa ser esse ninho ou ainda da sua constituição, tenho para mim
que se tratam das variáveis necessárias a ultrapassar um desafio primário,
primordial e que se apresenta como um obstáculo à evolução.
No decorrer do nosso primeiro
ciclo de vida, aquele que é tido como o ciclo de aprendizagem e da adequação da
alma a esta viagem, vamos explorando os meios em que nos relacionamos, vamos
fazendo o reconhecimento das nossas motivações e emoções, vamos relembrando a
experiência de viver numa realidade dual e vamos, acima de tudo, analisando as
relações que estabelecemos de forma voluntária ou involuntária, abrindo uma
porta à redescoberta daquilo que esperamos inconscientemente de nós mesmos. Já
tenho dito várias vezes, e digo-o com toda a veemência e assertividade, que a
vida é uma experiência de amor, uma caminhada dirigida pelo coração. É uma
caminhada de partilha, de desafios mútuos, em que as teias relacionais se revelam
no decifrar do código de realização pessoal e coletiva. As relações são um
mistério que encerra os segredos que decidimos esconder bem fundo na nossa
memória inconsciente para podermos alcançar com maior esforço, mas mais
gratificação, o sucesso do nosso propósito.
Tenho dito também que as relações
e a forma como nos apresentamos perante elas são um ato de pura autodefinição.
O modo como optamos por incluir ou excluir alguém da nossa vida é um espelho de
outras opções pessoais que refletem uma forma de estar perante aquele que é o
nosso caminho e, dito de outro modo, a forma como decidimos ou não enfrentar os
nossos desafios. Isto é algo passível de ser (des) construído com o mínimo de
livre arbítrio quando toca aos relacionamentos ponderados, surgidos nas
encruzilhadas secundárias. Mas quando diz respeito ao ninho, aquela que é tida
como a “família”, o livre arbítrio fica substancialmente reduzido, limitado por
forças que constrangem e obrigam a reequacionar as opções. Algo em nós, seja a
moral, a ética, os laços fraternos, a própria recriação da vida ou o senso
comum, tolda-nos os movimentos e faz-nos abençoar esta instituição como aquela
que é capaz de resolver os nossos problemas e devolver à nossa vida a justiça
de que precisamos para nos sentirmos adequados ao mundo em que vivemos. A minha
opinião, fundamentada no trabalho que desenvolvo com a numerologia e na
perceção que tenho da vida através de todos os meus sentidos, diz que não é o
propósito primeiro, sequer o último, desta instituição fazer-nos sentir bem com
a nossa própria pele. Como qualquer outra relação que possamos estabelecer ao
longo do nosso caminho, o papel de quem nos recebe no mundo é o de testar os
nossos conhecimentos sobre a verdade, ajudar-nos, pelos mais diversos
itinerários ou desvios, a encontrar a verdadeira orientação, aquela que vem de
dentro de nós. A “família”, à semelhança de todas as outras famílias que vamos
tendo – entenda-se, os amigos, os colegas de trabalho, as relações afetivas - não
é mais do que força criadora de uma dinâmica em que nos inserimos e que permite
aflorar em nós questões que devem ser despertadas. Não obstante, ao contrário
das demais relações, há na família um orgulho especial por ser a “escolhida”. Este
é um orgulho que se exibe de forma altiva, reunido de direitos e deveres,
frequentemente mais de direitos do que deveres, e que nos condiciona. O grande
mistério e o sucesso deste tipo de “família” passam por, mediante desafios
constantes, mútuos, abraçados ou ignorados, constituir-se como uma força
libertadora, e não um motivo de posse, uma condição ou restrição. A verdadeira
razão de escolhermos um ninho, um colo onde repousar as nossas imperfeições de
começo de vida e as nossas incertezas, é a oportunidade que reconhecemos nesse
ninho para nos libertar das dúvidas sobre nós próprios e nos ajudar a encontrar
mais facilmente o percurso que nos leva até nós mesmos, numa suprema consagração
da alma.
Independentemente de como nos são
apresentados esses desafios, seja sob a forma de amor fraterno, de dedicação,
compreensão, ou ainda sob a sua forma desvirtuada, num vazio total de valores, há
na “família” um propósito maior para a sua existência. Independentemente do
entendimento que façamos dos laços que nos unem e prendem, maior será a compreensão de
nós mesmos se aceitarmos de coração aberto os desafios que nos são propostos,
acolhendo no nosso colo, com carinho, tolerância, compreensão e amor, o ninho
que escolhemos para nos iniciar na vida e permitir que também o ninho se
desafie a si próprio.
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