terça-feira, 2 de abril de 2013

Ninho



Ao reler um texto que publiquei há cerca de um mês, dei por mim submersa em questões acerca de um tema suficientemente controverso, sensível e praticamente intocável. Defendia eu, nesse dito texto, que a alma escolhe o colo em que decide nascer, tocada por olhares e gestos de carinho que se tornam na sua primeira impressão deste mundo. Continuando a defender a mesma ideia, vou mais além ao identificar esse ninho como o nosso primeiro e verdadeiro desafio. Quaisquer que sejam as condições que embalam a alma ao nascimento, independentemente do muito ou pouco funcional que possa ser esse ninho ou ainda da sua constituição, tenho para mim que se tratam das variáveis necessárias a ultrapassar um desafio primário, primordial e que se apresenta como um obstáculo à evolução.


No decorrer do nosso primeiro ciclo de vida, aquele que é tido como o ciclo de aprendizagem e da adequação da alma a esta viagem, vamos explorando os meios em que nos relacionamos, vamos fazendo o reconhecimento das nossas motivações e emoções, vamos relembrando a experiência de viver numa realidade dual e vamos, acima de tudo, analisando as relações que estabelecemos de forma voluntária ou involuntária, abrindo uma porta à redescoberta daquilo que esperamos inconscientemente de nós mesmos. Já tenho dito várias vezes, e digo-o com toda a veemência e assertividade, que a vida é uma experiência de amor, uma caminhada dirigida pelo coração. É uma caminhada de partilha, de desafios mútuos, em que as teias relacionais se revelam no decifrar do código de realização pessoal e coletiva. As relações são um mistério que encerra os segredos que decidimos esconder bem fundo na nossa memória inconsciente para podermos alcançar com maior esforço, mas mais gratificação, o sucesso do nosso propósito.


Tenho dito também que as relações e a forma como nos apresentamos perante elas são um ato de pura autodefinição. O modo como optamos por incluir ou excluir alguém da nossa vida é um espelho de outras opções pessoais que refletem uma forma de estar perante aquele que é o nosso caminho e, dito de outro modo, a forma como decidimos ou não enfrentar os nossos desafios. Isto é algo passível de ser (des) construído com o mínimo de livre arbítrio quando toca aos relacionamentos ponderados, surgidos nas encruzilhadas secundárias. Mas quando diz respeito ao ninho, aquela que é tida como a “família”, o livre arbítrio fica substancialmente reduzido, limitado por forças que constrangem e obrigam a reequacionar as opções. Algo em nós, seja a moral, a ética, os laços fraternos, a própria recriação da vida ou o senso comum, tolda-nos os movimentos e faz-nos abençoar esta instituição como aquela que é capaz de resolver os nossos problemas e devolver à nossa vida a justiça de que precisamos para nos sentirmos adequados ao mundo em que vivemos. A minha opinião, fundamentada no trabalho que desenvolvo com a numerologia e na perceção que tenho da vida através de todos os meus sentidos, diz que não é o propósito primeiro, sequer o último, desta instituição fazer-nos sentir bem com a nossa própria pele. Como qualquer outra relação que possamos estabelecer ao longo do nosso caminho, o papel de quem nos recebe no mundo é o de testar os nossos conhecimentos sobre a verdade, ajudar-nos, pelos mais diversos itinerários ou desvios, a encontrar a verdadeira orientação, aquela que vem de dentro de nós. A “família”, à semelhança de todas as outras famílias que vamos tendo – entenda-se, os amigos, os colegas de trabalho, as relações afetivas - não é mais do que força criadora de uma dinâmica em que nos inserimos e que permite aflorar em nós questões que devem ser despertadas. Não obstante, ao contrário das demais relações, há na família um orgulho especial por ser a “escolhida”. Este é um orgulho que se exibe de forma altiva, reunido de direitos e deveres, frequentemente mais de direitos do que deveres, e que nos condiciona. O grande mistério e o sucesso deste tipo de “família” passam por, mediante desafios constantes, mútuos, abraçados ou ignorados, constituir-se como uma força libertadora, e não um motivo de posse, uma condição ou restrição. A verdadeira razão de escolhermos um ninho, um colo onde repousar as nossas imperfeições de começo de vida e as nossas incertezas, é a oportunidade que reconhecemos nesse ninho para nos libertar das dúvidas sobre nós próprios e nos ajudar a encontrar mais facilmente o percurso que nos leva até nós mesmos, numa suprema consagração da alma. 


Independentemente de como nos são apresentados esses desafios, seja sob a forma de amor fraterno, de dedicação, compreensão, ou ainda sob a sua forma desvirtuada, num vazio total de valores, há na “família” um propósito maior para a sua existência. Independentemente do entendimento que façamos dos laços que nos unem e prendem, maior será a compreensão de nós mesmos se aceitarmos de coração aberto os desafios que nos são propostos, acolhendo no nosso colo, com carinho, tolerância, compreensão e amor, o ninho que escolhemos para nos iniciar na vida e permitir que também o ninho se desafie a si próprio.


Sem comentários:

Enviar um comentário